segunda-feira, 13 de julho de 2009

"Se lhes perguntassem, os habitantes de Leônia - outra das cidades invisíveis de Ítalo Calvino - diriam que sua paixão é "desfrutar coisas novas e diferentes". De fato. A cada manhã eles "vestem roupas novas em folha, tiram latas fechadas do mais recente modelo de geladeira, ouvindo jingles recém lançados na estação de rádio mais quente do momento". Mas a cada manhã "as sobras da Leônia de ontem aguardam pelo caminhão de lixo", e um estranho como Marco Pólo olhando, por assim dizer, pelas frestas das paredes da história de Leônia, ficaria imaginando se a verdadeira paixão dos leonianos na verdade não seria "o prazer de expelir, descartar, limpar-se de uma impureza recorrente". Caso contrário, por que os varredores de rua seriam "recebidos como anjos", mesmo que sua missão fosse "cercada de um silêncio respeitoso" (o que é compreensível - "ninguém quer voltar a pensar em coisas que já foram rejeitadas")? Como os leonianos se superam na sua busca por novidades, "uma fortaleza de dejetos indestrutíveis cerca a cidade", "dominando-a de todos os lados, como uma cadeia de montanhas".
Poderíamos perguntar: será qeu os leonianos enxergam essas montanhas? Às vezes sim, em particular quando uma rara golfada de vento leva a seus lares novos em folha um odor que lembra um monte de lixo, e não os produtos plenamente frescos, reluzentes e perfumados expostos nas lojas de novidades. Quando isso acontece, é difícil para eles desviar os olhos - teriam de olhar, cheios de preocupação, medo e tremor, para as montanhas, e sse horrorizar com essa visão. Eles abominariam a feiúra delas e as detestariam por macularem a paisagem - por serem fétidas, insossas, ofensivas e revoltantes, por abrigarem perigos conhecidos e outros, diferentes de tudo que conheceram antes, por serem dépósitos de obstáculos visíveis e de outros nem mesmo imagináveis. Não gostariam dessa visão e prefeririam não continuar olhando por muito tempo. Odiariam os dejetos de seus devaneios de ontem tão apaixonadamente quanto amaram as roupas da moda e o brinquedos de último tipo. Gostariam que as montanhas se desvanecessem, sumissem - dinamitadas, esmagadas, pulverizadas ou dissolvidas. Iriam queixar-se da preguiça dos varredores de rua, da doçura dos capatazes e da complacência dos chefes.
Mais ainda que os próprios dejetos, os leonianos odiariam a idéia de sua indestrutibilidade. Ficariam horrorizados com a notícia de que as montanhas de que desejam tão avidamente de desvencilhar mostram-se relutantes em se degradar, deteriorar e decompor por si mesmas, assim como resistem e são também imunes aos solventes. Desesperados, não aceitariam a simples verdade de que os odiosos montes de lixo só poderiam não existir se, antes de mais nada, não tivessem sido feitos (por eles mesmos, os leonianos!). Eles se recusariam a aceitar que (como diz a mensagem de Marco Pólo, que os leonianos não ouviram), "à medida que a cidade se renova a cada dia, ela preserva totalmente a si mesma na sua única forma definitiva: o lixo de ontem empilhado sobre o lixo de anteontem e de todos o dias e anos e décadas". Os leonianos não ouviriam a mensagem de Marco Pólo porque o que ela lhes diria (quer dizer, se quisessem ouvir) é que, em vez de preservarem o que afirmam amar e desejar, só conseguem tornar permanente o lixo. Só o inútil, o desorientador, repelente, venenoso e temível é resitente o bastante para permanecer ali enquanto o tempo passa".
"Vidas Desperdiçadas" Zygmunt Bauman.

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